Medina Osório à Carta Capital: Judiciário pode anular acordo de leniência com empreiteiras

Para jurista, autoridade administrativa não pode celebrar acordo de leniência com base na lei anticorrupção ainda não regulamentada na esfera federal
por Fábio Medina Osório — publicado 23/02/2015 17:18

Um dos principais efeitos da omissão governamental em relação à Lei “Anticorrupção”  é a inviabilização de qualquer iniciativa da Controladoria Geral da União (CGU), que não pode instaurar investigações com base na Lei 12.846/13 antes da regulamentação dessa norma. Se não pode instaurar investigações, tampouco pode desencadear processos punitivos e, muito menos, aplicar penalidades. Por consequência, a autoridade administrativa não pode celebrar acordos de leniência. Exatamente por isso, causa surpresa o noticiário de que há tratativas em andamento para celebrar acordos de leniência, com base nessa Lei, entre a CGU e empreiteiras.

Como se sabe, a Lei 12.846/13 define que serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal os critérios do “compliance”, seja para atenuar penalidades, seja – e aqui é uma tese nossa – para excluir o próprio nexo causal.  O regulamento do Executivo, cuja minuta está na mesa da Presidente Dilma, deverá definir e detalhar quais são os  procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades que as empresas estarão obrigadas a adotar em âmbito federal, e por meio de quais instrumentos obrigatórios as empresas deverão viabilizar a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta em suas estruturas internas. Só assim, as empresas terão direito ao devido processo legal administrativo.

Desse modo, percebe-se que a ausência de regulamentação federal impede que a Lei seja aplicada na esfera administrativa, embora não iniba a atuação de instituições como o MPF. A lei prevê que, na omissão das autoridades administrativas – e este é o caso federal  – outras instituições podem buscar a implementação da Lei “Anticorrupção” por via judicial, marcadamente o MPF. A ausência do Regulamento Federal não impede que a Lei “Anticorrupção” venha a ser aplicada no arcabouço de ações civis públicas. O risco da omissão governamental é inviabilizar aplicação da Lei Anticorrupção por autoridades administrativas federais, na medida em que não existem parâmetros de “compliance” para nortear a imposição de penalidades ou mesmo eventual exclusão do nexo causal.

A omissão da presidência da república, até este momento, ao deixar de regulamentar a Lei Anticorrupção, faz com que os esforços atuais da AGU e da CGU na negociação de acordos de leniência sejam infrutíferos, pois eventuais acordos poderão ser anulados no Judiciário.

De acordo com o art. 6o  da Lei “Anticorrupção”, na esfera administrativa poderiam ser aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções (hoje não podem ser aplicadas por ausência do regulamento federal):

I – Multa no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação;

II – Publicação extraordinária da decisão condenatória.

§ 1o  As sanções serão aplicadas fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações.

§ 2o  A aplicação das sanções previstas neste artigo será precedida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou equivalente, do ente público.

§ 3o  A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado.

§ 4o  Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais).

§ 5o  A publicação extraordinária da decisão condenatória ocorrerá na forma de extrato de sentença, às expensas da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa jurídica ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio de afixação de edital, pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores.

§ 6o  (VETADO).

Art. 7o  Serão levados em consideração na aplicação das sanções:

I – A gravidade da infração;

II – A vantagem auferida ou pretendida pelo infrator;

III – A consumação ou não da infração;

IV – O grau de lesão ou perigo de lesão;

V – O efeito negativo produzido pela infração;

VI – A situação econômica do infrator;

VII – A cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações;

VIII – A existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;

IX – O valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados; e

X – (VETADO).

Parágrafo único.  Os parâmetros de avaliação de mecanismos e procedimentos previstos no inciso VIII do caput serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal.

Quais as consequências para uma omissão desta envergadura? Há que se refletir, ainda, sobre este tópico, mas não há dúvida alguma quanto à importância dessa Lei, que é produto de compromissos internacionais, e que lamentavelmente ainda não veio a ser regulamentada pelo Poder Executivo Federal, gerando ambiente de impunidade e de insegurança jurídica aos próprios administrados.

*Jurista, Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri e Presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE)

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