Carta Capital: A restrição ao foro privilegiado auxilia o combate à corrupção?

Em 24 de janeiro, a 8º turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região irá julgar a decisão do juiz Sérgio Moro de condenar Lula a nove anos e meio de prisão. Após a divulgação da data, a defesa do ex-presidente apontou tramitação recorde no julgamento, o que feriria a “isonomia de tratamento” aos réus em um processo célere.

A celeridade do processo contra Lula na primeira e segunda instâncias é usada por muitos cidadãos para defender o fim ou a restrição ao foro por prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado. A impressão de parte significativa da população é de que as instâncias superiores são marcadas pela morosidade.

O caso particular de Lula não é, porém, uma regra. Segundo Fábio Medina Osório, Ministro-Chefe da Advocacia-Geral da União em 2016, a Operação Lava Jato não é representativa do que é a primeira instância em todo o Brasil. Nesse caso, “é uma situação peculiar ao retratar a concentração de jurisdição em um único juiz”.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal iniciou um debate para restringir o foro somente no caso de crimes cometidos durante o exercício do cargo. Em 23 de novembro de 2016, oito dos 11 ministros votaram a favor do processo, mas Dias Toffoli pediu vista. Ainda não há uma data para que o tema volte à pauta da Corte.

No Congresso Nacional, há uma proposta na mesma linha. A PEC 333, do senador Alvaro Dias (PV-PR), prevê a extinção do foro especial em casos de crimes comuns cometidos pelas autoridades contempladas. Em 12 de dezembro, foi criada uma comissão especial para apreciar a proposta.

De acordo com os números citados pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso, tramitam atualmente mais de 500 inquéritos e ações penais contra autoridades com foro, sem contar os casos sigilosos. No Brasil, um estudo do Senado Federal apontou cerca de 54 mil cidadãos com algum tipo de foro especial em função do cargo.

Nesse contexto, “o sistema é ruim porque desgasta politicamente o Supremo, porque um tribunal constitucional não deve figurar como juízo criminal de primeira instância e é ruim porque alonga os processos indefinidamente”, afirmou Barroso em novembro de 2017.

Na contramão, o ministro Gilmar Mendes acredita que a medida em tramitação no STF não funcionará. “Uma justiça que funciona mal, uma das piores justiças, agora vai receber os políticos. É um tipo de populismo. Não vai funcionar. Eu sou mau profeta. Aquilo que eu falo acontece”, disse ao se posicionar contra a ação, embora reconheça a necessidade de mudanças na lei.

O fim do foro não deveria ser visto como o principal instrumento de combate à corrupção, diz Medina Osório. “As raízes da corrupção estão distantes do foro, residem em lacunas com maior grau de solução, no mercado, na política e nas próprias instituições fiscalizadoras do sistema eleitoral e dos mecanismos de controle e transparência.”

Medina Osório explica que o foro por prerrogativa de função, existente no Brasil desde o Império, surge para que determinadas autoridades sejam julgadas por um tribunal, em vez de um juiz, em razão da relevância de suas funções. “Isso ocorre porque um órgão colegiado tem menores chances de errar do que um órgão monocrático. Uma prerrogativa inerente à função e não à pessoa”, afirma.

Também entre as críticas favoráveis ao foro por prerrogativa está a imprescindibilidade de manter a independência das autoridades monocráticas em relação às influências dos acusados. “O órgão colegiado é mais imune, em tese, às pressões externas do que um órgão monocrático. Nesse sentido, mantém-se a proteção ao órgão julgador e o tribunal conserva-se em maior simetria de poder com o lado acusado”.

Lei da Ficha Limpa é outro aspecto positivo do foro por prerrogativa de função. De acordo com a legislação, o político elegível condenado por um órgão colegiado perde a elegibilidade. É o que acontece com as autoridades protegidas pelo foro: são julgados diretamente por um tribunal e podem se tornar inelegíveis desde o primeiro julgamento.

Segundo Diogo Rais, professor em Direito Eleitoral e Constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie, sem o instituto, as autoridades terão mais tempo para recorrer às decisões dos juízes singulares. “Isso pode transcorrer em maior ou menor tempo dependendo da rapidez de cada tribunal”, afirma Rais. Ainda assim, “um processo no tribunal pode demorar 20 anos para ser julgado mostra a ineficiência do tribunal, não do foro. O que faz um caso prescrever não é o foro, é o tempo que o tribunal leva para fazer o seu serviço”.

O plenário do Senado aprovou, em segundo turno, a proposta de emenda à Constituição (PEC) do fim do foro privilegiado (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Um dos aspectos negativos do foro é justamente a morosidade dos tribunais superiores. “Os colegiados demoram para julgar, uma vez que tem mais juízes nas primeiras instâncias do que desembargadores nas superiores, é capilar. No entanto, isso deveria ser melhorado. Se o caso chegasse na segunda instância ou em tribunais superiores e os desembargadores ou ministros julgassem com rapidez, qual seria o problema do foro?”, questiona o professor.

Nessa perspectiva estrutural, Fernanda de Almeida Carneiro, advogada criminalista e professora da pós-graduação em Direito Penal Econômico da Faculdade de Direito do IDP-SP, acredita que as instâncias superiores não têm suporte para realizar as investigações. O STF é composto por 11 ministros e é responsável por julgar casos de afronta à Constituição Federal. Com a prerrogativa do foro, “o tribunal não tem tempo para se dedicar às questões que são realmente constitucionais”.

Além disso, Carneiro aponta um subterfúgio criado pelo foro às autoridades. “Quando o processo está para ser julgado, a autoridade renuncia, os autos vão para um tribunal inferior e o processo recomeça. E quando está para ser julgado por um órgão singular, candidata-se”, explica a advogada criminalista. “Essa malandragem acaba levando muitos casos à prescrição”, e recorda que um terço das ações penais do STF foram arquivadas nos últimos dez anos em decorrência de prescrições, segundo um levantamento feito pela Folha de S. Paulo, em 2016.

Eduardo Azeredo (PSDB-MG), ex-deputado, senador e governador por Minas Gerais, esteve envolvido em crimes relacionados ao mensalão mineiro ou tucano. A denúncia de peculato e lavagem de dinheiro contra Azeredo e outros 14 acusados foi recebida pelo STF em 2007. No entanto, em 2014, ele renunciou ao cargo de deputado federal e o Supremo deixou de ser a instância competente para julgar o caso. Ele foi condenado a mais de 20 anos de prisão, mas por conta de recursos, aguarda em liberdade.

Condenados no mensalão petista em 2012, José Genoíno e José Dirceu, embora não tivessem o foro por prerrogativa de função, foram julgados e condenados diretamente pelo STF. Isso não permitiu o duplo grau de jurisdição que possibilita os processos recursais. Das 38 acusações tramitando na corte, 35 casos não eram contemplados pela prerrogativa. Na época, o Supremo afirmou que a discrepância se deu porque todas as autoridades estavam envolvidas no mesmo fato.

O que muda se houver a restrição?

O sistema de Justiça brasileiro é uma espécie de pirâmide, define Rais, no qual do STF é o ápice. Das instâncias primárias é possível recorrer no Tribunal de Justiça de cada estado e, posteriormente, no Superior Tribunal de Justiça e STF.

Se aprovada a proposta, seja no STF ou no Congresso Nacional, Rais acredita que mais processos iriam para as primeiras instâncias. Ainda assim, proporcionalmente esse movimento não mudaria excessivamente os órgãos singulares. Já a saída de casos dos tribunais mudaria o quadro dos órgãos colegiados. Os tribunais federais são um por estado; o Superior Tribunal da Justiça e o STF são um no País todo.

“De uma certa maneira, os tribunais superiores teriam mais tempo de realizar outras funções. O STF acumula a função de corte jurisdicional e constitucional. O Brasil tem índices de atrasos impressionantes”, diz o professor.

Ao serem transferidos para as instâncias inferiores, Fernanda explica que as provas coletadas não serão descartadas necessariamente. “Se estiver em um estágio de depoimentos prestados e provas coletadas, tudo será remetido para o juiz de primeira instância”.

STF ou Congresso Nacional?

Ao realizar uma mudança constitucional, os especialistas entendem que pode haver a interferência do poder Judiciário no poder Legislativo pelo Supremo. Para o ex-ministro da Advocacia-Geral da União, o STF está violando a separação de poderes, “uma vez que cabe ao Congresso Nacional modificar a legislação do foro via emenda constitucional”.

Rais concorda e afirma que o local para a discussão da política deve ser na política, no Parlamento. “No entanto, muitas vezes o STF vem avançando na política, trazendo um poder para fazer transformações que deveriam ser feita no Congresso. Sou contra esse excesso de poder concentrado, porque hoje pode acertar, mas amanhã pode errar”, afirma do professor.

Segundo a professora do IDP, esse movimento faz com que o STF frequentemente acabe legislando, expondo a politização da Justiça. “O Supremo, ao meu ver, não tem competência para limitar do alcance de um dispositivo constitucional”.

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