Da (in)aplicabilidade do foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa

Valber Melo[1]

Filipe Maia Broeto[2]

O foro por prerrogativa funcional, como instituto complexo e polêmico que é, sempre atraiu para si a atenção dos estudiosos no âmbito jurídico. Se, de um lado, há quem o defenda, de outro, há aqueles que são contrários à sua existência. Não obstante, entretanto, os pensamentos pró ou contra o instituto – que tem assento constitucional, destaque-se –, far-se-á, na presente oportunidade, uma análise da possibilidade/necessidade de sua “extensão” às ações de improbidade administrativa.

Destaque-se que, para o desenvolvimento válido e coerente da presente temática, levar-se-á em conta o fato de que instituto existe e, por ter guarida constitucional, pelo menos enquanto assim o for, deve (rá) ser observado pela atividade sancionatória estatal.

A dar início efetivamente ao enfrentamento do tema proposto, mister especificar o que, de fato, vem a ser o foro funcional e para qual finalidade foi criado pelo Constituinte. Aclarando o tema, ao dissertar sobre as prerrogativas (dentre elas, o foro funcional) de certas autoridades públicas, José Afonso da Silva preleciona que essas “São estabelecidas menos em favor do congressista que da instituição parlamentar, como garantia de sua independência perante outros poderes constitucionais”.[3]

É de se ver que não se trata de privilégio – que tem conotação pessoal e, por isso, seria de todo inconstitucional, por afronta ao postulado da isonomia material –, mas, sim, de verdadeira garantia constitucionalmente, assegurada a certas funções (e não pessoas, frise-se) essenciais ao pleno desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.

A razão de ser da garantia ora em estudo, segundo escólio do Ministro Victor Nunes Leal, se traduziria na presunção de que “os Tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influencias que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado”.[4]

Nesse contexto, nota-se claramente que nada há de (in) constitucional ou, mesmo, (i) moral na existência e utilização da garantia do foro por prerrogativa funcional no âmbito do processo penal. É de se ver, todavia, que o dito foro deve estender-se não somente aos processos criminais, mas, também, às ações de improbidade administrativa.

Para fundamentar tal linha intelectiva, desenvolver-se-ão argumentos calcados em três premissas essenciais, quais sejam: (i) a inegável similitude ontológica das sanções cominadas nas ações de improbidade administrativa com as do processo penal; (ii) a máxima do “a maiore ad minus” – se se pode o mais, se pode o menos; e (iii) o potencial comprometimento do adequado julgamento de uma autoridade pública de relevância nacional por uma instancia singela.

Como já esposado no parágrafo pretérito, afigura-se sustentável a tese ora defendida, num primeiro momento, tendo em vista a induvidosa aproximação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador. Isso porque, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm afirmado que as sanções aplicadas na ação dita de “natureza civil” aproximam-se sobremaneira àquelas punições prevista no direito criminal, razão pela qual a elas deve ser dispensado tratamento processual semelhante.

Note-se que tal entendimento tem preponderado, outrossim, nos tribunais superiores, haja vista que a ação de improbidade administrativa, regulada pela Lei nº 8.429/92, possui insofismavelmente nítidos reflexos punitivos[5]. Por essa razão, impõe, por simetria, que sejam observadas as normas de Direito Processual Penal, sobretudo no tocante à necessária observância de direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição.

A propósito, é isto o que se passa com o rol de sanções abrigado pela Lei nº 8.429/92, tendo em vista que referida legislação traz medidas como suspensão de direitos políticos, interdição de direitos civis – proibição de contratar com a Administração Pública -, etc.

De se ver, assim, que as ações de improbidade administrativa revestem-se, insofismavelmente, de um caráter “quase-penal”, utilizando-se, aqui, expressão empregada por Gilmar Ferreira Mendes e Arnold Wald nos primórdios da Lei nº 8.429/92, quando ainda não se tinha a definição da sua natureza jurídica[6].

Com efeito, a despeito de a ação de improbidade administrativa não gozar natureza puramente penal, fato é que suas sanções são em muito assemelhadas às do direito punitivo, sendo, pois, a elas aplicáveis os mesmos princípios e, dentre eles, evidentemente, a regra de foro por prerrogativa funcional.

Tal assim se dá, repise-se, porquanto as ações de improbidade administrativa têm importantes reflexos punitivos (de direito administrativo sancionador), assemelhando-se, desta forma, ao processo penal, sobretudo, e principalmente, no que se refere à necessária observância dos direitos e das garantias fundamentais assegurados na Constituição Federal.

A propósito, Medida Osório sustenta, com maestria, que

[…] o regime jurídico aplicável à improbidade desenhada na Lei 8.429/92 viabiliza a aplicação dos princípios penais ao Direito Sancionador da improbidade, por simetria, dado o alcance da cláusula do devido processo legal em Direito Administrativo Sancionador e no Direito Penal. E, por isso mesmo, é correto tecnicamente alcançar a garantia institucional da prerrogativa de foro às ações de improbidade administrativa, em toda sua extensão.

Assim, considerando a proximidade entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal, pode-se afirmar que incidem, sobre aquele, os princípios penais deste, tais como o da tipicidade, o da culpabilidade e o da responsabilidade subjetiva, entre outros, conforme já entendeu o Superior Tribunal de Justiça.[7]

Note-se que isso ocorre, porquanto a Lei nº 8.429/92, ao delinear, em seu art. 12[8], um rol de sanções materialmente administrativas[9], aplicáveis ao agente ímprobo, optou por identificá-las em alto grau com aquelas penalidades de natureza eminentemente criminal que a Constituição Federal de 88 elencou em seu art. , inciso XLVI, a exceção da pena privativa de liberdade[10].

A corroborar a alegada semelhança, veja-se trecho do substancioso voto do saudoso Ministro Teori Albino Zavascki, da Suprema Corte, proferido no bojo do Ag. Reg. Na Petição 3.240, Distrito Federal, no qual deixou assentado que:

Embora as sanções aplicáveis aos atos de improbidade não tenham natureza penal, há profundos laços de identidade entre as duas espécies, seja quanto à sua função (que é punitiva e com finalidade pedagógica e intimidatória, visando a inibir novas infrações), seja quanto ao conteúdo. Com efeito, não há qualquer diferença entre a perda da função pública ou a suspensão dos direitos políticos ou a imposição de multa pecuniária, quando decorrente de ilícito penal e de ilícito administrativo.

Destarte, considerando o rol punições já mencionado, não se pode negar a cristalina identidade ontológica entre as sanções administrativas previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/92 e aquelas prescritas pela Constituição da República em seu art. , XLVI, como próprias do Direito Penal, contemplando suspensão e interdição de direitos, bem como aplicação de multa. Demais disso, ambas as espécies contemplam medidas reparadoras de ressarcimento ao erário e de perda dos bens ou importâncias acrescidas ilicitamente ao patrimônio.

Desta ótica, pois, forçoso admitir-se que, malgrado sua natureza civil, a Ação de Improbidade Administrativa alberga uma série de sanções próximas da seara penal, razão pela qual, presentemente, dá-se a ela um caráter “sui generis”, próprio do Direito Administrativo Sancionador, entendendo-se, assim, que, conquanto formalmente cível, sua essência é reflexo imediato e inquestionável do regramento punitivo dado no âmbito do Direito Penal brasileiro[11].

Nessa toada, aliás, são os valiosos ensinamentos de Fábio Medina Osório:

Falamos de um direito processual público, sem dúvida, que se bifurca nas esferas administrativa stricto sensu e jurisdicional. Nesta, pode-se aduzir que a tutela ligada diretamente ao art. 37, § 4º, da Magna Carta, consubstanciada na LGIA, está conectada ao direito processual regido por normas do Código Processual Civil, Lei da Ação Civil Pública, Lei da Ação Popular, e LGIA, que é a matriz fundamental. Recentemente, tem-se que esta mesma ação punitiva está associada ao Código Processual Penal, não apenas no trato da prerrogativa de foro, […] mas também em relação ao enfrentamento de problemas que demandem aproximações entre o direito administrativo sancionador e o direito penal.[12]

Resta evidente, portanto, que a presente tese não se trata de um sofisma ou, mesmo, uma fraude hermenêutica. Em verdade, através da comparação ontológica das punições previstas na LIA, chega-se, inexoravelmente, à conclusão de que é, sim, aplicável a garantia da prerrogativa de foro também às ações de improbidade administrativa.

Assevere-se que tal linha intelectiva encontra guarida na Teoria das Competências Complementares Implícitas, estudada no Direito Comparado, mas já adotada em tribunais brasileiros, mormente pelo Supremo Tribunal Federal. [13]

A aprofundar a abordagem do tema da Teoria Das Competências Complementares Implícitas, vejam-se as lições de José Joaquim Gomes Canotilho:

[…] A força normativa da Constituição é incompatível com a existência de competências não escritas, salvo nos casos de a própria Constituição autorizar o legislador a alargar o leque de competências normativo-constitucionalmente especificado. No plano metódico, deve também afastar-se de ‘poderes implícitos’, de ‘poderes resultantes’ ou de ‘poderes inerentes’ como formas autônomas de competência. É admissível, porém, uma complementação de competências constitucionais por meio do manejo de instrumentos metódicos de interpretação (sobretudo a interpretação sistemática ou teleológica). Por essa via, chegar-se-á a duas hipóteses de competência complementares implícitas: (1) competências implícitas complementares, enquadráveis no programa normativo-constitucional de uma competência explícita e justiçáveis, porque não se trata tanto de alargar competências, mas de aprofundar competências (ex.: quem tem competência para tomar uma decisão deve, em princípio, ter competência para a preparação e a formação da decisão); (2) competências implícitas complementares, necessárias para preencher lacunas constitucionais patentes por meio da leitura sistemática e analógica de preceitos constitucionais.[14]

Consigne-se, por relevante, que a referida teoria resta consolidada no Supremo Tribunal Federal na hipótese de existência de lacunas constitucionais, quando a lógica permitir indicar a competência do respectivo tribunal ou quando a própria Constituição o estabelecer.

Partindo-se, pois, das balizas até aqui estabelecidas, há que se questionar se a “ampliação” ou “extensão” do foro por prerrogativa de função às ações de improbidade administra configura hipótese de aumento competências ou, ao contrário, mostra-se como necessário aprofundamento competências.

No caso em estudo, ao que parece, em sendo estendida a garantia do foro funcional às ações de improbidade administrativa, não haveria qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, porquanto tal interpretação decorre da própria finalidade do instituto do foro por prerrogativa de função, que é proporcionar um julgamento com mais isenção, de acordo com o escopo teleológico da Constituição de 88.

Ne viés, em total afinação ao quanto exposto, vale destacar que o Supremo Tribunal Federal, dando guarida à tese aqui defendida, já entendeu pela “extensão” do foro por prerrogativa funcional também às ações de improbidade administrativa.

Veja-se, nesse sentido, a Pet 3211-0 QO/DF, em que a Suprema Corte decidiu que um agente com prerrogativa de foro – no caso Ministro do STF –, não poderia se submeter à jurisdição de um magistrado de 1º grau em uma ação de improbidade, sob pena de se inverter, vertiginosamente, a ordem constitucional estabelecida nas prerrogativas, como, por exemplo, na hipótese de um juiz de grau inferior decretar a perda do cargo de um juiz de grau superior.

Questão de ordem. Ação civil pública. Ato de improbidade administrativa. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Impossibilidade. Competência da Corte para processar e julgar seus membros apenas nas infrações penais comuns.

1. Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros.

2. Arquivamento da ação quanto ao Ministro da Suprema Corte e remessa dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos demais.

(Pet 3211-0 QO/DF. Pleno, Rel. P/Acórdão Ministro Menezes Direito, DJE-117).

Note-se que esse julgado reconheceu (e reiterou) a tese da existência, na Constituição Federal de 88, de competências implícitas complementares, deixando claro que, não obstante a declaração de inconstitucionalidade do preceito normativo infraconstitucional (Lei 10.628, de 2002 – art. 84, § 1º e § 2º CPP), a Prerrogativa de Foro, em ações de improbidade administrativa, tem base para ser sustentada – ainda que implicitamente – na própria Carta Constitucional.

Não fosse o bastante, vale ressaltar, ainda, que o Eminente Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, no bojo no MS 31234 MC, de sua relatoria (no qual se questionava a competência em ação de improbidade contra o Ministro de Estado da Fazenda) deferiu medida liminar consignando naquela oportunidade que:

Não seria coerente com a unidade normativa do texto constitucional, consoante já reconhecido nos precedentes acima transcritos, que Ministro de Estado respondesse como réu em ação de improbidade em trâmite no primeiro grau de jurisdição, à medida que o referido feito também pode acarretar a perda da função pública. Dessume-se, portanto, que, a despeito da nítida oscilação jurisprudencial pretérita sobre o tema, o entendimento de que agentes políticos podem responder como réus em ação de improbidade, mas com observância da prerrogativa de foro, tem se consolidado mais recentemente na jurisprudência pátria, e em particular, no âmbito desta Suprema Corte (…).

Não se desconhece, evidentemente, que a matéria ainda carece de uma certa sedimentação jurisprudencial, o que, sem dúvida alguma, já vem sendo feito pelos tribunais pátrios, mormente no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Nessa toda, impõe-se consignar que, mais recentemente, o saudoso Ministro Teori Albino Zavascki, no bojo do agravo regimental na petição 3.240/DF, interpretando os precedentes fixados no MS 31234/MC, bem como na Pet 3211-0 QO/DF, com a maestria que sempre lhe foi peculiar, consignou lições irretocáveis sobre o tema, in verbis:

Embora as sanções aplicáveis aos atos de improbidade não tenham natureza penal, há profundos laços de identidade entre as duas espécies, seja quanto à sua função (que é punitiva e com finalidade pedagógica e intimidatória, visando a inibir novas infrações), seja quanto ao conteúdo. Com efeito, não há qualquer diferença entre a perda da função pública ou a suspensão dos direitos políticos ou a imposição de multa pecuniária, quando decorrente de ilícito penal e de ilícito administrativo.

[…]

Quanto ao mais, entretanto, não há diferença entre uma e outra. Somente a pena privativa de liberdade é genuinamente criminal, por ser cabível unicamente em casos de infração penal.

[…]

É justamente essa identidade substancial das penas que dá suporte à doutrina da unidade da pretensão punitiva (ius puniendi) do Estado, cuja principal consequência “é a aplicação de princípios comuns ao direito penal e ao direito administrativo sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador, SP: RT, 2000, p. 102; ENTERRIA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tomás- Ramon. Curso de direito administrativo, trad. Arnaldo Setti, SP:RT, 1991, p. 890). Realmente, não parece lógico, do ponto de vista dos direitos fundamentais e dos postulados da dignidade da pessoa humana, que se invista o acusado das mais amplas garantias até mesmo quando deva responder por infração penal que produz simples pena de multa pecuniária e se lhe neguem garantias semelhantes quando a infração, conquanto administrativa, pode resultar em pena muito mais severa, como a perda de função pública ou a suspensão de direitos políticos.

[…]

Essa compreensão se deve adotar, segundo penso, em relação ao foro por prerrogativa de função. Se a Constituição tem por importante essa prerrogativa, qualquer que seja a gravidade da infração ou a natureza da pena aplicável em caso de condenação penal, não há como deixar de considerá-la ínsita ao sistema punitivo da ação de improbidade, cujas consequências, relativamente ao acusado e ao cargo, são ontologicamente semelhantes e eventualmente até mais gravosas. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. Se há, por vontade expressa do Constituinte, prerrogativa de foro para infrações penais que acarretam simples pena de multa pecuniária, não teria sentido negar tal garantia em relação às ações de improbidade, que importam, além da multa pecuniária, também a perda da própria função pública e a suspensão dos direitos políticos.

(STF, AgRg na Pet. 3.240/DF, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Segunda Turma, j. 19/11/2014, aguardando voto dos demais ministros, após pedido de vistas dos autos pelo Min. Roberto Barroso).

A toda evidência, os precedentes supracolacionados tão somente corroboram que o tema já não se mostra mais controverso como outrora. Ao revés, o que se pode perceber é a sedimentação da tese de que deve, sim, prevalecer o foro por prerrogativa de função, mesmo nas ações que versem sobre improbidade administrativa, tendo em mira a inequívoca similitude ontológica do Direito Administrativo Sancionador e do Direito Penal e Processual Penal.

De outro prisma, não fosse suficiente o fundamento de que a semelhança ontológica entre as punições do direito penal e direito administrativo sancionador admite a extensão do foro por prerrogativa funcional aos agentes públicos réus em ações de improbidade administrativa, bastaria trazer à baila, como argumentação inversa, o princípio do “a maiore ad minus, pelo qual, segundo aponta Aldemário Araújo Castro, o “que é válido para o mais, deve necessariamente prevalecer para o menos, ou “quem pode o mais, pode o menos”. [15]

Nessa toada, argumenta-se que, se o Constituinte Originário previu a prerrogativa de foro para agentes públicos que praticam crimes, que possuem a possibilidade de pena privativa de liberdade e, por isso, são em certa medida mais graves que atos de improbidade, não há justificativa (plausível) para que o mesmo não ocorra com as ações de improbidade administrativa.

Vale dizer, se para o crime – que é, em tese, “o mais” – há o foro por prerrogativa de função, o mesmo deve ocorrer com as ações de improbidade administrativa, que são, em certa medida, menos graves que os delitos propriamente ditos.

Nesse sentido, aliás, é o voto do então Ministro Cezar Peluso na QO da Pet. 3.211:

Se, pela Constituição, Ministro do Supremo Tribunal Federal só pode ser processado, nas infrações penais comuns, por esta Corte e, nos crimes de responsabilidade, pelo Senado Federal, não é concebível que ação por ilícito de menor gravidade, entre cujas sanções está a perda do cargo, possa ser atribuída à competência de outros órgãos. Insisto em que, se, pelos mais graves ilícitos da ordem jurídica, que são o crime comum e o crime de responsabilidade, Ministro do Supremo Tribunal Federal só pode ser julgado pelos seus pares ou pelo Senado da República, seria absurdo ou o máximo do contrassenso conceber que ordem jurídica permita que Ministro possa ser julgado por outro órgão em ação diversa, mas entre cujas sanções está também a perda do cargo. Isso seria a desestruturação de todo o sistema que fundamenta a distribuição da competência, para julgamento dos ilícitos mais graves atribuídos a Ministro da Suprema Corte, entre o Supremo Tribunal Federal e o Senado da República. Razão por que, pedindo maxima venia ao eminente Relator, assento a competência desta Casa’.

Com efeito, ou se entende que as sanções aplicáveis nos âmbitos do Direito Administrativo Sancionador e do Direito Penal são de tal modo semelhantes a ponto de permitir o tratamento análogo no que tange ao foro por prerrogativa de função, ou se admita (por coerência) que, se a prerrogativa funcional vale para o direito criminal – que pode, em tese, ser mais grave –, deve, por óbvio, ser aplicada, também, às ações de improbidade administrativa. Isso porque a maiore ad minus!

Por derradeiro, mas não menos importante, há que se alertar que a competência de instância singela para julgamento de autoridades máximas, de relevância nacional, tão somente fragiliza o Estado Democrático de Direito, na medida em que contrariam a finalidade da proteção outorgada, pela própria Constituição Federal, às autoridades detentoras de foro funcional, que, pela relevância da função que desempenham, não podem ficar à mercê de toda e qualquer sorte.

Nesse contexto, portanto, não pairam dúvidas de que a prerrogativa de foro tem como fundamento precípuo o princípio da isonomia e o princípio hierárquico, buscando, ao invés de privilegiar pessoas, preservar a independência funcional dos agentes detentores de prerrogativas constitucionais e institucionais.

Noutras palavras, o instituto em análise tem por finalidade a proteção das funções desempenhas por determinados agentes, e não a proteção destes, enquanto pessoas. É até mesmo por isso que não se afigura correto falar em foro privilegiado (porquanto privilégios são pessoais), mas, sim, em foro por prerrogativa de função (caráter de impessoalidade).

É justamente pela relevância dessas funções – e não das pessoas, repita-se – que não se admite (ou não se deveria admitir) que autoridades nacionais, tais como Ministros do Supremo Tribunal Federal, Senadores, Deputados Federais, Ministros de Estado, etc., sejam julgadas por instância de primeiro grau, seja em sede de crimes comuns e de responsabilidade (competência constitucional explícita), seja, ainda, no âmbito das ações de improbidade administrativa (conclusão que se chega através de uma interpretação da teoria das competências complementares implícitas).

Destaque-se, portanto, que se entende perfeitamente aplicável o instituto do foro por prerrogativa de função também às ações de improbidade administrativa, uma vez que não se cuida de privilegio inconstitucional, e, sim, garantia funcional de grande relevo para o desenvolvimento independente do Estado Democrático de Direito.

Destarte, com supedâneo nos argumentos até aqui expendidos, consigna-se, à guisa de conclusão, que a extensão do foro por prerrogativa de função às AIA é tão somente consectário lógico do próprio sistema de competências constitucionais, não sendo, nem em hipótese, espécie de privilegio, porquanto traduz-se em corolário da teoria das competências complementares implícitas.


[1] Advogado; Mestrando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa; Professor de Direito Processual Penal e Direito Penal da Universidade de Cuiabá; Pós-graduado em Ciências Criminais; Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal; Pós-graduado em Direito Público; Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT.

[2] Acadêmico de Direito da Universidade de Cuiabá – aprovado no 9º semestre no XX Exame da OAB – e Estagiário no Escritório Valber Melo Advogados Associados (Atualmente); Estagiário do Ministério Público Federal, aprovado em 1º lugar, 2015.2;Estagiário do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, aprovado em 1º lugar, 2015.1;Estagiário da Defensoria Pública do Estado do Ceará, 2014.2;

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ed. Malheiros: São Paulo/SP. P. 532.

[4] STF, Rcl. 473, Rel. Min. Vicotr Nunes Leal. Aud. De publicacao de 06/06/62.

[5] STF, AC 2032 QO, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 15/05/2008, DJe-053 DIVULG 19-03-2009 PUBLIC 20-03-2009 EMENT VOL-02353-01 PP-00090 RTJ VOL-00209-02 PP-00539; STJ, REsp 895.530/PR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 18/11/2008, DJe 04/02/2009.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira; WALD, Arnoldo. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. In: Revista de Informação Legislativa, v.35, n.138, abr./jun. 1998, p. 215.

[7] STJ, MS 13791/DF, Rel. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, j. 13/04/2011, DJe 25/04/2011; STJ, REsp 751634/MG, Rel. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, j. 26/06/2007, DJ 02/08/2007.

[8]”Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: I – na hipótese do art. 9º, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos; II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos; III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos”. BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.

[9] Em mais de uma oportunidade, consignamos que a sanção administrativa consiste”em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo. A finalidade repressora, ou punitiva, já inclui a disciplinar, mas não custa deixar clara essa inclusão, para não haver dúvidas“. MEDINA OSÓRIO, Fábio. Direito administrativo sancionador. 3. Ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 95. O conceito é repetido em Id., Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública – corrupção – ineficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 227.

[10]”Art. 5º, XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; […]”. BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.

[11] MEDINA OSÓRIO, Fábio. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública – corrupção – ineficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 234.

[13] […] resta consolidada no Supremo Tribunal a aplicação da tese das competências complementares implícitas no caso da existência de lacunas constitucionais e a lógica permitirem indicar a competência do respectivo tribunal ou quando a própria Constituição Estadual o estabelecer. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edic….

[14] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. Ed. Coimbra: Almedina, 2002. P. 543.

[15] CASTRO, Aldemário Araújo, O documento eletrônico e a assinatura digital in Revista Jus Vigilantibus – acesso a 11 de março de 2009.

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