Fábio Medina Osório, para o Correio Braziliense: “Crise institucional”

O Brasil vive momentos complexos. Um ex-procurador-geral da República confessa que quase matou um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e desistiu voluntariamente. A conduta, todavia, pode configurar, em tese, atentado a normas de segurança nacional. Além disso, confessou, em diversas passagens, o cometimento de atos que tangenciam a legislação penal e de repressão à improbidade administrativa, ao ser assediado por agentes públicos com propostas consideradas por ele próprio indecorosas e silenciar a respeito, mesmo sendo PGR. Evidentemente, pode-se questionar os mecanismos de reação institucional a esses comportamentos: qual a competência do STF? qual a tipificação dos fatos revelados? Ao que parece, interlocutores do então procurador-geral tentaram abafar a Lava-Jato e as investigações, e contaram, até determinado ponto, com o silêncio do chefe do Ministério Público da União.

De qualquer modo, inevitável constatar que se trata de informações chocantes, que desnudam a crueza do poder político da cúpula do Ministério Público Federal, e a necessidade de controles mais rígidos sobre essa instituição. A qual controle está submetido o procurador-geral? Essa é uma indagação fundamental numa República democrática. Recentemente, observou-se a preocupação procedente do presidente Bolsonaro com a escolha do PGR, criteriosamente feita após longo período de escrutínio. Porém o mandato de um procurador-geral não pode ser um cheque em branco. Há que se pensar em controles mais rígidos e democráticos.

É certo que, sob o fundamento da coibir abusos, não se pode atropelar direitos fundamentais. Nesse sentido, há que se prestar atenção no inquérito envolvendo as fake news, que tramita no STF, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. A que título pessoas são investigadas pelo STF, mesmo não possuindo qualquer prerrogativa de foro? Acredito que foi um erro do STF a desconstrução da prerrogativa de foro. Aliás, a Corte deveria não apenas retomar seu entendimento original, como estender tal prerrogativa às ações de improbidade. Todavia, há uma espécie de retomada dessa prerrogativa, com um viés altamente inovador: a prerrogativa em razão de a vítima ofendida ser ministro do STF.

Trata-se de uma perturbadora inovação inconstitucional. Um inquérito que investiga, por iniciativa ex officio do STF, ameaças a ministros daquela Corte, abarca toda e qualquer ofensa a membros do Supremo Tribunal Federal, incluindo até mesmo uma tentativa de homicídio interrompida por desistência voluntária. E essa tentativa obstaculizada por desistência autoriza, anos depois, expedição de mandados de busca e apreensão pelo próprio STF. Será que o STF poderia autorizar sua competência para julgar ilícitos cometidos no interior de suas dependências? Tudo indica que se trata de uma anomalia e que a Corte está legislando de modo arbitrário em matéria de prerrogativa de foro, embora as intenções sejam as melhores possíveis, pois buscam resguardar a dignidade da Corte e a segurança de seus membros. Afinal, era necessário dar uma pronta resposta às declarações consideradas estapafúrdias, desrespeitosas e aviltantes do ex-procurador-geral Rodrigo Janot, declarações que, em alguma medida, poderiam incitar crimes contra integrantes do STF.

Finalmente, nesse contexto de crise, observa-se um desgaste contínuo da força-tarefa da Lava-Jato, igualmente exposta ao crivo da opinião pública diante das sucessivas revelações do site The Intercept. Se é certo que as provas não poderão ser usadas nas esferas judicial e administrativa, por serem de origem ilícita, não se pode negar que, politicamente, causam estragos profundos, especialmente porque os interlocutores não apresentam uma negativa veemente e cabal de que as conversas sejam verdadeiras. Ao contrário, os indícios apontam na direção da sua verossimilhança, exigindo contraponto permanente quanto ao conteúdo, não obstante as lacunas e falta de contextualização. Esse uso contínuo do material permite um desgaste dos membros do MPF na comunidade jurídica e riscos reais à operação, exigindo-lhes, cada vez mais, prudência nas medidas a serem tomadas. Essa crise pode ensejar aperfeiçoamentos. A tendência é que se reduzam, por exemplo, as prisões arbitrárias.

Existe, ademais, cenário de potenciais nulidades na operação, o que se pode debitar ao entendimento dos Tribunais Superiores e à falta de cautela na origem. Tal perspectiva pode aprimorar os mecanismos de defesa na operação. Quer dizer, bastaria um olhar mais garantista na condução dos processos e se evitaria o debate estéril sobre nulidades nos Tribunais. A experiência indica que, quanto mais reforçadas as garantias da defesa, menores as chances de nulidades. Impossível ignorar que a nova Lei de Abuso de Autoridade surtirá efeitos no imaginário do Judiciário e do Ministério Público, amplificando a prudência e os níveis de fundamentação racional. A Lava-Jato, de qualquer sorte, seguirá com força seu caminho de depuração dos valores éticos e republicanos, aperfeiçoando-se como instrumento de combate à corrupção. Essa operação é um patrimônio cultural do Brasil e precisa ser preservada.

Fábio Medina Osório é advogado e foi ministro da Advocacia-Geral da União em 2016

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