Nesta entrevista exclusiva para o The Legal 500, analiso a evolução do Direito Administrativo Sancionador no Brasil, o impacto da reforma da Lei de Improbidade, o papel do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos e os desafios do combate à corrupção na era da inteligência artificial.
Confira a entrevista completa:
A evolução do Direito Administrativo Sancionador no Brasil: da teoria à jurisprudência
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Dr. Medina Osório, o senhor foi um pioneiro na introdução do Direito Administrativo Sancionador no Brasil. Como o senhor avalia a evolução dessa área desde a publicação do seu primeiro artigo em 1999, passando pelo lançamento de sua obra em 2000 e a introdução da disciplina na UFRGS em 2004?
Fábio Medina Osório: Quando publiquei meu primeiro artigo sobre o tema em 1999 e, no ano seguinte, lancei o Direito Administrativo Sancionador, o Brasil ainda não reconhecia a existência de um regime sancionador próprio dentro do Direito Administrativo. As sanções administrativas eram aplicadas de forma dispersa, sem um conjunto claro de princípios que garantisse a segurança jurídica e o respeito às garantias fundamentais.
A introdução dessa disciplina nos cursos de mestrado e doutorado da UFRGS em 2004 foi um marco, pois trouxe para o debate acadêmico a necessidade de aplicar os princípios do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador, garantindo o devido processo legal, a presunção de inocência, a legalidade estrita e a proporcionalidade.
Com o tempo, essa doutrina influenciou diretamente a jurisprudência do STJ e do STF, que passaram a reconhecer que a improbidade administrativa e as infrações corporativas devem seguir um regime sancionador baseado nas garantias constitucionais. Esse movimento culminou na Lei 14.230/2021, que reformou a Lei de Improbidade Administrativa e adotou expressamente esse regime, consolidando uma interpretação que eu já defendia desde 1999.
Além disso, essa evolução no Brasil seguiu uma tendência internacional, especialmente na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que passaram a influenciar diretamente as decisões dos tribunais superiores brasileiros.
O STF e a retroatividade da nova Lei de Improbidade
Fábio Alberici de Mello, jornalista: A reforma da Lei de Improbidade Administrativa incorporou o regime do Direito Administrativo Sancionador, mas ainda há controvérsia sobre sua aplicação retroativa. Como o senhor avalia a posição do STF sobre essa questão?
Fábio Medina Osório: O STF tem um papel decisivo na consolidação da reforma, mas adotou uma interpretação restritiva em alguns aspectos fundamentais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já estabeleceu que as normas sancionatórias mais benéficas devem sempre ser retroativas, pois a retroatividade das leis mais favoráveis é um direito fundamental reconhecido internacionalmente.
No entanto, ao julgar a repercussão geral sobre a prescrição da improbidade (Tema 1.199), o STF entendeu que a prescrição não é uma questão de direito substancial, negando sua retroatividade. Essa posição contradiz a jurisprudência tanto da Corte Interamericana quanto da Corte Europeia de Direitos Humanos, que tratam a prescrição como um direito essencial do acusado.
Outro ponto de preocupação foi a restrição da retroatividade para casos já finalizados. O STF decidiu que, se a sanção já foi aplicada e o caso concluído, a nova lei mais benéfica não pode ser retroativa. Essa interpretação precisa ser revista para que o Brasil se alinhe plenamente com as garantias consagradas no sistema interamericano.
O combate à corrupção e o papel da inteligência artificial
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Alguns afirmam que a reforma da Lei de Improbidade teria enfraquecido o combate à corrupção. O senhor concorda com essa visão?
Fábio Medina Osório: Não. O combate à corrupção não pode depender exclusivamente de um modelo repressivo. Ele exige uma abordagem mais sofisticada, baseada na integração entre os órgãos de controle, no uso da inteligência artificial e na ampliação da capacidade investigativa do Estado.
Tecnologias como aprendizado de máquina e análise preditiva de dados são ferramentas essenciais para detectar padrões de corrupção antes que danos sejam causados. Além disso, é fundamental fortalecer a cooperação entre os órgãos de fiscalização e melhorar o compartilhamento de informações para tornar o sistema mais eficiente.
A reforma da Lei de Improbidade Administrativa trouxe maior segurança jurídica ao processo sancionador, sem comprometer o combate à corrupção. O desafio agora é melhorar os mecanismos de investigação e modernizar os métodos de prevenção e repressão a atividades ilícitas.
O futuro do Direito Administrativo Sancionador no Brasil
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Por fim, quais são os próximos desafios para o Direito Administrativo Sancionador no Brasil?
Fábio Medina Osório: O principal desafio é consolidar definitivamente o regime sancionador dentro do Direito Administrativo, garantindo que ele não sofra retrocessos no STF e que se alinhe cada vez mais com a jurisprudência da Corte Interamericana e da Corte Europeia de Direitos Humanos.
Além disso, é essencial avançar na regulamentação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), evitando insegurança jurídica e interpretações divergentes entre os entes federativos.
O Brasil está no caminho certo, mas precisa fortalecer essas garantias para que o Direito Administrativo Sancionador continue a evoluir de maneira justa, segura e eficiente.
A inconstitucionalidade da improbidade culposa e os limites da conformação legislativa
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Dr. Medina Osório, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão recente, declarou a inconstitucionalidade da improbidade culposa, reafirmando a exigência de dolo para caracterizar um ato ímprobo. A decisão gerou intensos debates, especialmente sobre o alcance da reforma promovida pela Lei 14.230/2021 e a possibilidade de que o legislador, no futuro, retome a previsão de sanções para condutas culposas. Como o senhor avalia essa decisão do Supremo Tribunal Federal?
Fábio Medina Osório: A reforma da Lei de Improbidade Administrativa foi plenamente constitucional e está dentro da liberdade de conformação legislativa que o princípio democrático confere ao legislador. O que a Lei 14.230/2021 fez foi delimitar o conceito de improbidade administrativa, retirando a modalidade culposa para garantir maior segurança jurídica e alinhar o regime sancionador da improbidade com os princípios fundamentais do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador.
No entanto, é importante entender que a retirada da improbidade culposa da legislação não significa que o legislador esteja impedido de reintroduzi-la no futuro. O próprio princípio democrático que permitiu a revogação dos tipos culposos também permite ao legislador, se considerar necessário, reconsagrar a improbidade culposa dentro dos limites da liberdade de conformação legislativa.
Não há proibição constitucional que impeça a existência de tipos culposos no sistema sancionador. O Código Penal, por exemplo, prevê tipos como o peculato culposo, e ninguém nunca afirmou que essa classificação seria inconstitucional. Da mesma forma, se o legislador entender que há necessidade de sanções para atos culposos que causem grave dano ao erário ou comprometam a moralidade administrativa, ele poderá reintroduzir a improbidade culposa por meio de um novo debate legislativo.
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Mas, do ponto de vista do regime constitucional da improbidade, haveria alguma limitação material para essa reintrodução dos tipos de improbidade culposa? O STF, ao retirar a improbidade culposa, não estaria estabelecendo um limite interpretativo para o legislador?
Fábio Medina Osório: Não vejo essa decisão do STF como um obstáculo absoluto à criação legislativa da improbidade administrativa. O que a Corte fez foi interpretar a Lei 14.230/2021 dentro do contexto do regime sancionador atual, reforçando que a exigência de dolo, no momento, decorre da vontade do legislador e do princípio da legalidade estrita. Isso, porém, não significa que uma futura lei que preveja improbidade culposa seria automaticamente inconstitucional.
O ponto crucial aqui é entender que a infração administrativa tem uma natureza sancionatória, mas não é idêntica ao Direito Penal. O legislador tem uma ampla margem de discricionariedade para definir as infrações administrativas e os respectivos regimes de responsabilidade. A Constituição exige que as infrações administrativas sejam combatidas, mas não impõe um modelo único para sua classificação.
Portanto, se amanhã o legislador decidir que certos comportamentos culposos representam um risco inaceitável para a probidade administrativa e merecem sanção, ele pode criar novos tipos legais, desde que sejam respeitados os princípios constitucionais. O que não pode ser permitido é que essa decisão do STF seja interpretada como uma barreira intransponível, sob pena de dificultar a evolução normativa do Direito Administrativo Sancionador.
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Isso nos leva a um debate mais amplo sobre os limites da liberdade de formação legislativa. A infração administrativa tem sido um tema de forte judicialização, especialmente no Supremo Tribunal Federal, que é frequentemente chamado a interpretar a compatibilidade das normas sancionadoras com a Constituição. Você acredita que há risco de hiperjudicialização, no sentido de que o Judiciário pode acabar restringindo excessivamente o campo de atuação do legislador nessa matéria?
Fábio Medina Osório: Sem dúvida. Esse é um dos maiores desafios para o Direito Administrativo Sancionador no Brasil. O STF tem um papel fundamental na garantia da ordem constitucional, mas o controle de constitucionalidade não pode se tornar uma limitação indevida da capacidade legislativa. A liberdade para moldar a legislação é um pilar do Estado Democrático de Direito, e sua restrição excessiva pode levar ao enfraquecimento da função legislativa, gerando instabilidade jurídica e insegurança institucional.
O risco de hiperjudicialização ocorre quando o Judiciário começa a revisar escolhas legislativas legítimas, sem que haja uma clara violação da Constituição. No caso da infração administrativa, deve-se ter cautela para não transformar o STF em um órgão que, no final das contas, defina o conteúdo das leis sancionadoras, quando essa é uma prerrogativa do Congresso Nacional.
Se houver um debate democrático que leve à reintrodução de infrações culposas, e se essa reintrodução for feita dentro dos parâmetros constitucionais, não há razão para que o Judiciário invalide essa opção. O risco é que, diante de uma nova lei que preveja tipos culposos, haja uma onda de judicialização novamente, com argumentos de que a decisão do STF de hoje teria estabelecido um entendimento definitivo sobre a necessidade de dolo. Isso seria um erro, pois a decisão atual se limita a interpretar a legislação vigente, e não a estabelecer um princípio constitucional absoluto.
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Diante desse cenário, que recomendações você faria para que os legisladores atuem de forma mais segura, evitando novos questionamentos no STF?
Fábio Medina Osório: O legislador deve agir com sólida fundamentação técnica e jurídica. Se houver um movimento para reintroduzir a infração negligente, será essencial que o debate legislativo seja bem estruturado, baseado em estudos técnicos e parâmetros já consolidados no Direito Comparado. O raciocínio deve demonstrar que a previsão dos tipos culposos atende a um interesse público legítimo e respeita as garantias do Direito Administrativo Sancionador.
Além disso, é importante que o Congresso estabeleça critérios objetivos para caracterizar a negligência grave, evitando que a norma seja interpretada de forma ampla e imprecisa. Quanto mais claramente definida for a regra, menor será o risco de que o Supremo Tribunal Federal a considere inconstitucional por violar o princípio da segurança jurídica.
Outro ponto crucial é o diálogo entre os poderes. O legislador deve estar atento às discussões no STF e na comunidade jurídica para criar normas que sejam juridicamente sólidas e possam resistir a eventuais questionamentos. Isso envolve um debate qualificado com juristas, acadêmicos e profissionais do direito, garantindo que a legislação seja formulada de modo a evitar conflitos interpretativos desnecessários.
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Você acredita que esse diálogo entre os poderes está ocorrendo de forma satisfatória no Brasil, ou existe uma desconexão entre o que o legislador propõe e o que o Judiciário decide?
O direito ao erro legalmente tolerável e o impacto da reforma da Lei nº 14.230/2021
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Dr. Medina Osório, desde seu primeiro trabalho sobre infração administrativa, publicado em 1997, você defende que a infração é uma ilegalidade qualificada e que os administradores públicos devem ter uma margem de erro legalmente tolerável. Você sempre comparou essa tese com o funcionamento do próprio sistema de justiça, destacando que os juízes podem errar e ter suas sentenças anuladas, membros do Ministério Público podem formular petições ou denúncias ineptas e, da mesma forma, os administradores públicos não devem ser punidos por erros comuns. A Lei nº 14.230/2021 adotou essa tese ao eliminar a infração negligente e exigir dolo específico para a responsabilidade. No entanto, o erro grosseiro, que antes era um critério diferenciador, foi abolido. Como você avalia essa mudança e os impactos da exigência de dolo específico para a configuração da infração?
Fábio Medina Osório: A reforma da Lei de Infrações Administrativas representou um avanço significativo ao reconhecer que nem todas as ilegalidades podem ser tratadas como infrações administrativas. Desde o início dos debates doutrinários sobre o tema, sempre defendi que a infração administrativa não poderia ser confundida com um simples erro na gestão pública. Um agente público, no exercício de suas funções, deve ter um espaço para atuar que permita a tomada de decisões complexas sem o temor constante de uma responsabilidade automática.
A Lei nº 14.230/2021 adotou essa visão ao eliminar a forma negligente de infração e estabelecer o dolo específico como requisito essencial para a responsabilidade. Essa mudança é fundamental porque impede que os servidores públicos sejam punidos por decisões técnicas ou administrativas que, embora possivelmente erradas, foram tomadas sem má-fé.
Antes da reforma, a existência de erro grosseiro era usada como um critério intermediário para caracterizar a infração. Com a nova lei, o erro grosseiro deixou de ser uma base independente para a responsabilidade, o que reforça a necessidade de comprovar o dolo específico. Isso significa que a mera violação de regras ou a prática de um ato administrativo errado não são mais suficientes para caracterizar uma infração.
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Essa mudança também impacta diretamente a forma como as ações de infração são estruturadas, especialmente no que diz respeito à petição inicial e à necessidade de descrever o dolo específico. Como essa exigência afeta a dinâmica das ações?
Fábio Medina Osório: A exigência de dolo específico tem implicações profundas na forma como as ações de infração devem ser conduzidas. Antes da reforma, era comum que as ações fossem ajuizadas com uma formulação genérica, simplesmente alegando que determinado agente público agiu com a intenção de violar normas. Agora, isso não é mais suficiente.
A petição inicial de uma ação por infração deve descrever, em detalhes, a intenção específica do agente público. O dolo genérico, ou seja, a mera intenção de cometer um ato contrário à lei, não é mais suficiente. É necessário demonstrar o propósito ilícito pretendido pelo agente, qual era sua real intenção ao praticar o ato.
Se uma ação for ajuizada sem essa descrição precisa do dolo específico, o juiz deve ordenar a emenda da petição inicial. Se a petição não for emendada, ela deve ser rejeitada. Isso representa uma mudança estratégica na narrativa da conduta ilícita, pois exige que o autor apresente uma descrição detalhada da intenção do agente desde o início da ação.
Além disso, essa exigência também se aplica às ações de ressarcimento ao erário. Não é mais possível ajuizar ações dessa natureza sem demonstrar o dolo específico. Isso significa que o simples fato de um gestor público causar dano ao erário não é suficiente para que ele seja responsabilizado por infração. É necessário provar que ele agiu deliberadamente para prejudicar os cofres públicos.
Fábio Alberici de Mello, jornalista: Essa distinção entre dolo genérico e dolo específico revive um debate que há muito permeia o Direito Penal e agora assume um papel central no Direito Administrativo Sancionador. Em termos práticos, como você vê essa distinção influenciando a condução dos processos de infração?
Fábio Medina Osório: A distinção entre dolo genérico e dolo específico sempre foi um tema fundamental no Direito Penal, e agora se tornou um elemento central no Direito Administrativo Sancionador. No contexto da infração administrativa, essa distinção é crucial porque afeta diretamente a classificação dos atos ilícitos e a forma como a acusação deve ser formulada.
O dolo genérico, que se limitava à mera intenção de descumprir normas, não pode mais ser usado como base para uma ação por infração. Agora, a acusação deve demonstrar que o agente público tinha um propósito específico ao realizar o ato, o que exige um nível muito maior de detalhamento na descrição dos fatos. Isso torna a acusação mais técnica e impede que as ações sejam baseadas em inferências subjetivas sobre a intenção do gestor.
Essa mudança proporciona maior segurança jurídica para os servidores públicos e evita a trivialização da infração administrativa. Durante muito tempo, houve uma tendência à criminalização excessiva da gestão pública, na qual qualquer decisão errada estava sujeita a responsabilidade. Com a exigência de dolo específico, a responsabilidade agora depende de uma análise mais rigorosa das intenções do agente e das circunstâncias específicas do caso.
Fábio Alberici de Mello, jornalista: E como você vê a aplicação prática dessa mudança pelos tribunais? O Ministério Público e o Judiciário estão preparados para essa nova exigência?
Fábio Medina Osório: A aplicação dessa mudança pelos tribunais ainda está na fase de adaptação, e acredito que será necessário um período de transição para que todos os atores envolvidos – Ministério Público, Judiciário e advogados – ajustem suas práticas processuais a essa nova realidade.
O Ministério Público, por exemplo, terá que reformular sua abordagem ao ajuizar ações, pois não poderá mais basear as acusações em inferências genéricas sobre a conduta dos servidores públicos. Será necessário um trabalho investigativo mais detalhado e uma produção de provas mais robusta para demonstrar a existência do dolo específico.
Os juízes também precisarão adotar um critério mais rigoroso ao analisar as petições iniciais, exigindo que o dolo específico esteja devidamente descrito antes de aceitar a ação. Se essa exigência não for atendida, a ação não deve ser sequer admitida. Isso reflete a própria lógica sancionadora, que exige maior precisão e previsibilidade para que o direito de defesa seja plenamente assegurado.
Além disso, a jurisprudência dos tribunais superiores deve consolidar parâmetros mais objetivos para a caracterização do dolo específico, garantindo que a nova exigência não seja interpretada de forma restritiva ou expansiva, em desacordo com a intenção do legislador. Esta será uma fase crucial para a consolidação da reforma e para o aprimoramento do regime de infrações administrativas no Brasil.