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Na terça-feira (16/4) a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) realizou sessão solene para homenagear o advogado e ex-ministro da Advocacia-Geral da União Fábio Medina Osório. Confira abaixo a íntegra da solenidade.
A força da cidadania contemporânea Se olharmos as origens mais remotas do conceito de cidadania, teremos de relembrar o desenvolvimento das cidades-estado gregas, as célebres poleis, entre os séculos VIII e VII a.C. São mais de 2.500 anos de História de um conceito que se transformou radicalmente, e nessa trajetória vem adquirindo contornos dinâmicos e cada vez mais inclusivos e complexos. Essas metamorfoses contínuas precisam ser bem compreendidas e assimiladas quando se fala sobre o cidadão contemporâneo e seu papel na sociedade. Pois bem, nada melhor do que falar um pouco sobre o conceito e os alguns conteúdos da cidadania quando se tem a oportunidade ímpar de receber um título de cidadão honorário, sobretudo de uma Capital de um dos países mais importantes do globo terrestre, que é nosso Brasil contemporâneo, país emergente como uma das potências mundiais, renovado de esperança em seus líderes. Assim, nesta breve fala, pretendo tratar um pouco sobre a força da cidadania contemporânea. Obviamente não posso iniciar sem os devidos agradecimentos a alguns poucos personagens essenciais a esta solenidade, e o faço em nome do Deputado Rodrigo Delmasso, vice-presidente da Câmara, que teve a iniciativa de tramitar esse título e aprova-lo nesta Casa. Delmasso é um desses líderes arrojados, que tramita projetos semelhantes para líderes como Deltan Dallagnol, Sérgio Moro, procuradores da Lava Jato, e me incluiu entre os beneficiários de sua iniciativa, razão pela qual agradeço muito emocionado. O Brasil precisa de lideranças como a de Delmasso, não por conta desta modesta iniciativa, talvez simbólica, mas pelo que ele representa em termos de coragem e de independência para esta Casa Legislativa. Agradeço também ao advogado, e entusiasta desta iniciativa, Dr. Valter Moura, um dos grandes defensores do movimento consumerista neste país, advogado do IDEC, que considero igualmente um dos responsáveis por esse momento. Agradeço também ao Conselheiro Manuel Paulo de Andrade Neto, outro grande responsável por este evento, um de seus idealizadores. Feitos esses agradecimentos preliminares, não poderia deixar de registrar um profundo agradecimento – perene – à minha família, na pessoa de minha esposa, Patrícia Grassi Osório, pelo apoio permanente, em todos os momentos, o que traduziu no movimento de vinda a Brasília, para que aqui efetivássemos residência e concretizássemos, enfim, esta cidadania. Voltando, agora, à digressão sobre o que seria a cidadania contemporânea, devo dizer que um conceito moderno de cidadania, desde o Iluminismo, com a revolução intelectual do Século 18, foi aproximando a cidadania dos ideários de igualdade e liberdade, permitindo aos cidadãos participar da construção do coletivo onde se encontram inseridos. Os direitos passam a ter uma maior proteção pelo Estado, com a perspectiva de que a qualidade de cidadão conferia ao seu titular a prerrogativa de usufruir da proteção oficial em determinada dimensão. Na civilização contemporânea, não há dúvida de que todo cidadão deve atuar em prol da sociedade, na defesa dos direitos inerentes à sua condição local e também à ampliação do espectro da cidadania no âmbito internacional. O título de cidadão, além de incluir direitos, também impõe deveres e obrigações. E ninguém ignora que nos dias de hoje a proteção estatal se estende para muito além da rede de cidadania em sentido estrito, dentro do que se pode designar como um estatuto de cidadania universal. É preciso entender que não há direitos naturais num contexto de cidadania, porque se trata de conquistas alcançadas a duras penas e no decorrer dos séculos, na medida em que os direitos são fenômenos sociais, produtos históricos, inclusive mutáveis no tempo e no espaço, parcialmente ligados ao próprio conceito de cidadania. O estatuto de cidadania é, assim, um estatuto de direitos civis e políticos, circunscritos pelo Estado. É importante notar que, ainda hoje, muitos direitos tidos como indiscutíveis para alguns, em realidade, continuam a ser plenamente controversos para outros, sendo a própria corrupção um valor que adquire maior ou menor peso, conforme a concepção ideológica de cada um. Essa patologia, a corrupção, definida, num universo sociológico, pelo Banco Mundial como o uso de poderes públicos para alcançar fins privados, ou, de um modo mais amplo, o uso de poderes decisórios para alcançar benefícios extraposicionais, pode ser entendida hoje como um dos pilares da cidadania contemporânea. Note-se que no Congresso a discussão do caixa 2 eleitoral foi postergada para uma segunda etapa do pacote anticrime, dentro da ótica do Supremo de que a ocorrência de irregularidade na campanha política não significa automaticamente a prática de crime conexo de corrupção. O debate sobre o alcance da punição à corrupção envolve direitos civis e políticos, intimamente associados ao alcance da cidadania. Quer dizer, o exercício da cidadania depende muito das opções políticas formuladas livremente por qualquer nação, num regime democrático. O princípio majoritário ainda é importante, e sempre será, para validar a vontade do povo. No Brasil, a opção política recente foi por uma cidadania compromissada com a inclusão cada vez maior do combate à corrupção, para agilizar a erradicação da pobreza e da desigualdade, dentro de pautas de liberalismo econômico. Atualmente, a concepção de cidadania, para além de alargar a participação política das pessoas, tende a restringir a participação de corruptos na vida pública. Essa é uma tendência global, não apenas no Brasil. Ao realizar essa espécie de opção política, o Brasil alinha-se com as Nações mais desenvolvidas, sem dúvida. De certo modo, percebe-se que a corrupção é um câncer que destrói as bases elementares de uma civilização, enfraquecendo os laços de confiança que unem os cidadãos e os detentores de poderes decisórios da esfera pública e privada. Como dizia Eduardo García de Enterría, primeiro juiz espanhol do tribunal europeu de direitos humanos, a corrupção acaba por corroer os próprios regimes democráticos, na medida em que mina a confiança dos cidadãos nas instituições. Os eleitos não ganham um cheque em branco para governar, mas sim um mandato nos termos das leis e da Constituição. Por certo, a vigilância sobre os homens públicos aumentou consideravelmente, inclusive por conta dos avanços tecnológicos e em decorrência da expansão da consciência em torno aos direitos inerentes à cidadania. Há um espectro da cidadania que significa maior controle sobre os governantes, sobre as esferas pública e privada no que concerne à probidade empresarial e administrativa, pois os desvios impactam os interesses dos cidadãos. No âmbito privado, intensificaram-se as regras de compliance, obrigando empresas particulares a adotar regras anticorrupção, a partir de deveres públicos. Na esfera pública, os agentes do Estado tornaram-se obrigados a atingir metas e resultados, associando-se não apenas ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da moralidade e da eficiência, com deveres substantivos. Emerge, assim, o direito fundamental à boa governança tanto na esfera privada quanto na seara pública, relacionando-se a práticas eficientes e honestas. Não por outra razão, estudos demonstram que a patologia da corrupção está intimamente relacionada com a desorganização administrativa, o desgoverno e a ineficiência endêmica, conforme já nos ensinava nos anos 90 o italiano Sabino Cassese, um dos maiores estudiosos do assunto no mundo. Nesse contexto, no entanto, as instituições fiscalizadoras devem atuar também com probidade e eficiência, respeitando os direitos dos cidadãos. Num texto de 2004, escrevi sobre a possível improbidade dos fiscalizadores, ocasião em que alertei para o risco do abuso de autoridade nas investigações e ações, sobretudo quando desrespeitassem direitos fundamentais de modo arbitrário. O espectro amplo da cidadania protege as pessoas, com o respectivo estatuto de direitos, através do princípio de interdição à arbitrariedade dos poderes públicos, contra atuações invasivas do Estado. Nos Estados Unidos, na Europa, ou em qualquer país civilizado, observa-se que autoridades são passíveis de responsabilidade quando permitem que instituições atuem de modo autoritário sobre direitos individuais, prejudicando as liberdades ou prerrogativas alheias. Essa também há de ser uma realidade no Brasil: a responsabilização das autoridades fiscalizadoras por abuso de poder, desvio de finalidade e outros ilícitos. Eis uma tradição por construir em nosso país. No entanto, ainda viceja uma cultura de impunidade em certos ambientes. O amadurecimento das instituições conduzirá, certamente, a novos paradigmas. A cidadania contemporânea envolve, pois, uma nova mentalidade de controle sobre os governantes, as autoridades e inclusive o setor privado, um controle sobre a ética pública, um espaço que se pode designar como público estatal e não estatal. Esse controle não é puramente repressivo, mas também consensual, participativo, dialógico, e remete a múltiplas formas jurídicas. O acesso à justiça está longe de ser o acesso ao judiciário, antes pelo contrário, há muitas outras instituições responsáveis pela distribuição da justiça. Marc Galanter já disse: não se confunda acesso à Justiça com acesso aos tribunais, assim como não se deve confundir acesso à saúde com acesso aos hospitais. Justiça é um ativo valioso distribuído por instituições como o Ministério Público, as advocacias públicas, os órgãos de controle, e mesmo as empresas privadas em suas múltiplas tarefas. O exercício desse controle sobre o Estado e mesmo o setor privado, de parte dos cidadãos, remete à ideia de uma sociedade participativa e de um estatuto qualificado de cidadania, de uma democracia substantiva, da qual nos falava o professor Robert Dahl, da Universidade de Yale. Aliás, em 1989, no livro Democracy and its critics, Dahl enumerou 7 instituições necessárias à Poliarquia, onde há um processo democrático em grande escala, no qual há uma autêntica cidadania: a) funcionários eleitos pelo povo, em distintas esferas, com poderes decisórios; b) eleições livres e justas, auditáveis por instâncias independentes; c) sufrágio inclusivo e real, como espelho da vontade popular; d) direito de concorrer a cargos eletivos, do modo mais amplo possível, observados padrões internacionais; e) liberdade de expressão do pensamento; f) informação alternativa, como forma de garantir distintas vias de acesso a pluralidade de visões da sociedade; g) autonomia associativa. Deve-se reconhecer a ampliação da Poliarquia para a Era dos controles. As sociedades digitais, na Era da Complexidade, onde a privacidade vem se tornando praticamente um direito cada vez mais restrito, exigem controles como ferramentas em prol da cidadania e a favor das democracias contemporâneas. Esse fortalecimento dos controles sobre esferas pública e privada ocorre na perspectiva da interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos, bem como na direção de agregar maior densidade ao princípio da transparência e aos princípios de boa governança nos setores público e privado quando lidam com direitos fundamentais das pessoas físicas e jurídicas. Essa cidadania responsável, consciente dos deveres e direitos, numa Era Complexa, é a cidadania contemporânea. Ela pressupõe o respeito ao Outro, à diversidade, ao ambiente democrático, mas remete cada vez mais a um estatuto qualificado que exige educação e responsabilidade. A ignorância é inimiga da cidadania, por isso as sociedades onde grassam a miséria, a desigualdade e a ignorância, práticas antidemocráticas são mais frequentes do ponto de vista substancial, podendo reproduzir-se a corrupção, o clientelismo e o patrimonialismo como formas de captação da vontade do próprio eleitor ou como enfraquecimento dos controles republicanos. O Brasil vem avançando na tomada de consciência da cidadania, seja pela amplificação da participação através das chamadas mídias sociais, seja pelo repúdio a determinadas patologias como a corrupção, com manifestações populares cada vez mais intensas, amplificando-se a voz crítica em relação aos que detém o poder. Há um longo caminho a percorrer ainda na educação. Caminhamos para a consolidação de uma democracia normal, em detrimento do que poderia ser considerada uma democracia patológica. A consciência crítica é um primeiro passo para a cura de uma sociedade doente. Formular os diagnósticos corretos e pensar as soluções cabíveis, apontando os caminhos, eis o desafio para a consolidação de uma cidadania contemporânea. |
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