A PEC 37 foi uma iniciativa eminentemente política, na medida em que não se poderia conceber o poder investigatório criminal do Ministério Público como cláusula pétrea. A rejeição desta PEC 37 ocorreu em decorrência de causas políticas, e não jurídicas. Habilidade dos membros do Ministério Público no uso das redes sociais e na confecção de uma linguagem acessível ao povo foi uma das causas de legitimação de seu poder investigatório criminal. As instituições policiais não conseguiram justificar exclusividade nas investigações através de uma linguagem hermética e repleta de tecnicismos.
A meu ver, o poder investigatório criminal é uma prerrogativa implícita na Constituição que, à luz do princípio democrático, pode sofrer alterações substanciais, com redistribuição de atividades e poderes para outras instituições. Porém, a alteração do artigo 144 da Constituição de 1988 não inibiria a eficácia do artigo 129 da Carta Magna. A presença de poderes implícitos é uma realidade eloquente. A reorganização das atribuições institucionais do Ministério Público ou das Polícias não poderia rigorosamente ser encarada como atividade impedida constitucionalmente por alguma cláusula imutável, eis que não existe deliberação do Constituinte nesse sentido. Daí a razão pela qual o debate em torno à PEC 37 foi travado no campo político, no qual o autêntico foco haveria de ser o interesse da sociedade representada no Parlamento. E sua rejeição traduziu uma perspectiva de fortalecimento do Ministério Público brasileiro. De qualquer sorte, a técnica de alteração da Constituição, para suprimir poderes implícitos, haveria de ser cuidadosamente pensada.
É de se constatar que a PEC 37 tratava dos chamados poderes investigatórios criminais do Ministério Público, mas não inibia os poderes investigatórios em geral da instituição, estes sim enraizados explicitamente na Magna Carta como uma das funções institucionais essenciais ao Ministério Público. Isso implica dizer que o Ministério Público possui inquestionáveis poderes para instruir seus expedientes investigatórios, peças informativas ou inquéritos civis, instrumentos que usa abundantemente na tutela de interesses difusos e coletivos. Nestes ambientes, a instituição pode requisitar documentos, informações, perícias, inspeções, inquirir pessoas, inclusive através de precatórias, realizar audiências públicas, expedir recomendações, e já o fazia com base na Lei 7347/1985, a Lei da Ação Civil Pública, posteriormente reforçada por várias outras normas de regência.
Essa situação gerava um cenário no mínimo curioso: se não tivesse poderes investigatórios criminais, o Ministério Público poderia investigar ilícitos através de inquéritos civis públicos e, nesse contexto, remeter peças informativas aos agentes ministeriais com atribuições na seara penal, os quais estariam legitimados a oferecer denúncia dispensando o inquérito policial, como se sabe. Com efeito, o Ministério Público pode, inclusive, oferecer denúncia dispensando o inquérito policial, ou seja, valendo-se das peças informativas reunidas num inquérito civil, assim como pode valer-se de investigações administrativas feitas por outras instituições. É de se indagar se em algum momento o poder investigatório chegou efetivamente a ser ameaçado, portanto.
O inquérito civil encontra suporte direto na Constituição de 1988 (artigo 129, II) como uma das funções essenciais do Ministério Público e, nesse sentido, talvez possa ser considerado um instrumento republicano indissociável da instituição e suas atribuições constitucionais. As áreas que podem ser defendidas através da tutela de interesses difusos são as mais variadas possíveis: sistema financeiro nacional; ordem econômica; ordem ambiental; sistema concorrencial; patrimônio público; direitos de minorias, entre outras que possam estar abrigadas nos conceitos de interesses difusos ou coletivos. Boa parte das investigações do Ministério Público brasileiro pode ser encerrada com termos de ajustamento de conduta, que constituem basicamente acordos através dos quais a instituição abdica do processo e o sujeito investigado aceita em troca determinado ônus pactuado no instrumento que consubstancia título executivo extrajudicial.
No entanto, também é necessário medir a eficácia do Ministério Público na área cível, pois percebo que o debate tem se pautado sobretudo pelo noticiário da mídia. Não há dúvidas de que a atuação do Ministério Público melhorou o ambiente regulatório, reduzindo aparentemente índices de impunidade, pois estamos diante de uma instituição independente e autônoma. Porém, há muitas questões pendentes de respostas e avaliações críticas, tais como aquelas atinentes à própria autonomia institucional no manejo das atribuições, sem falar nos resultados da instituição como um todo. Fala-se muito nas distorções da prerrogativa de foro, mas imperioso refletir sobre o papel dos procuradores-gerais diante da prerrogativa de algumas classes de pessoas , que só podem ser processadas por sua iniciativa. As avaliações devem ser direcionadas ao aperfeiçoamento da instituição.
Aqui ouso enumerar algumas questões para provocar o debate:
a) Quantos termos de ajustamento de conduta existem hoje em execução no Brasil?
b) Quais os objetos dos termos de ajustamento de conduta? Quais as sanções previstas para seu descumprimento?
c) Quantos inquéritos civis, peças de informação ou expedientes investigatórios cíveis existem em tramitação no Ministério Público brasileiro, qual data de sua instauração e qual o objeto?
d) Quantas ações de improbidade são propostas por procuradores-gerais de Justiça contra governadores?
e) Quantas ações civis públicas existem em andamento e qual o objeto estatisticamente avaliado desse conjunto de ações? Existe uma classificação qualitativa destas ações, de seus pedidos, seu objeto?
f) Quantas sentenças ou acórdãos foram proferidos em matérias de ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público e qual o resultado estatístico em termos de procedência (total ou parcial) ou improcedência?
g) Quais os critérios do Ministério Público brasileiro para prover cargos de especialização na defesa de interesses difusos e coletivos?
h) Quais os controles que a instituição exerce sobre aqueles mais expostos à pressão do poder econômico ou político na área sensível dos interesses difusos e coletivos?
Enfim, o momento político é propício ao aprofundamento de reflexões e ao abandono de qualquer postura meramente retórica, raivosa ou marqueteira. As instituições devem ter humildade para participar de um debate crítico construtivo cujo destinatário é o povo brasileiro.
Fábio Medina Osório é advogado, doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri e presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE).
Revista Consultor Jurídico, 5 de julho de 2013