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A chamada Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) introduz novos e intrigantes desafios no sistema constitucional brasileiro, especialmente diante da previsão da chamada “responsabilidade objetiva” das empresas por atos de seus funcionários ou representantes que sejam lesivos à Administração Pública, ainda que os responsáveis tenham elas adotado, em tese, todas as cautelas necessárias à boa governança empresarial.
Como já tive oportunidade de defender no livro Direito Administrativo Sancionador, mesmo em relação às pessoas jurídicas, o princípio da responsabilidade subjetiva decorre do direito ao devido processo legal e da interdição à arbitrariedade dos poderes públicos, de modo que certamente os tribunais não aceitarão essa espécie de imposição da responsabilidade objetiva.
O sentido maior desta nova Lei Anticorrupção não pode ser o de esmagar o setor privado, mas sim o de prevenir práticas desonestas e incorretas. Daí a necessidade de as empresas privadas adotarem sistemas de “compliance”, ao fecharem contratos com as administrações públicas. Ou seja, as pessoas jurídicas precisam criar mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, o que será fundamental para eliminar riscos de causalidade em relação às infrações previstas tanto na Lei 8.429/1992 (Probidade Administrativa), quanto nesta Lei 12.846/2013 (Anticorrupção).
É verdade que os modelos de compliance exigíveis passam, conforme dicção do legislador, pela regulamentação federal, para impactar na “redução das penalidades”, e obviamente isso vale para qualquer esfera. No entanto, para cortar o campo da tipicidade, no item relação causal (conduta típica), é de se notar que essa espécie de autorregulação pode ser altamente relevante. As empresas privadas dispõem (e resulta necessário avaliar em que medida as entidades coletivas podem assumir esse protagonismo) de um papel potencial de autorregulação nesse novo contexto.
Traçando um paralelo, ao escrevermos o livro Mercado de Capitais — Regime Sancionador, em coautoria com Alexandre Pinheiro dos Santos e Julya Sotto Mayor Wellisch, sustentamos que a Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais), no desempenho das funções de autorreguladora privada, que supervisiona códigos de regulação e melhores práticas por ela concebidos, poderia impor penalidades assimiláveis pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) à luz do princípio do non bis in idem, segundo o qual não se pode ser condenado duas vezes pelo mesmo delito; nem um tributo pode incidir duas vezes sobre o mesmo fato gerador; nem se deve recair no erro uma vez cometido.
Dissemos, na ocasião: “O agente pode, por exemplo, vir a ser adequada e rapidamente penalizado por uma instituição autorreguladora, mediante decisão com um importante e visível efeito paradigmático junto ao mercado imobiliário, e em sede de termo de compromisso, após toda a análise discricionária cabível no âmbito da CVM, lograr obter um ajuste que afaste a possibilidade de aplicação de qualquer penalidade adicional pela Autarquia, em vista do postulado da proporcionalidade e de um entendimento institucional, no caso concreto, de que até os efeitos de qualquer possível nova sanção já teriam sido plenamente atingidos pela tempestiva e efetiva atuação autorrregulatória, afastando-se, ao menos a partir daí, a justa causa para uma nova ação sancionatória, diante, inclusive, da relação custo-benefício do processo punitivo”.
Assim, abre-se um novo espaço de atuação para os modelos autorreguladores, à luz da Lei 12.846/2013, o que pode ser objeto de reflexões mais aprofundadas, evitando-se multiplicação de processos punitivos sem justa causa, desprovidos de razoabilidade ou proporcionalidade, e alcançando-se a finalidade precípua do legislador, que busca a prevenção da má gestão pública e o fortalecimento da probidade empresarial. Um desafio completamente novo, certamente, e talvez nem imaginado em sua essência e em todos seus potenciais desdobramentos, mas necessário na agenda de produção intelectual e pragmática das instituições brasileiras.
Fábio Medina Osório é advogado, doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri e presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE).
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